sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A cor dos pensamentos

Fazia sete anos que não via a cor dos pensamentos mundanos. As noites passava a dormir o descanso biologicamente solicitado; as tardes, a barbear mendigos, conversar com pedintes, alimentar mães, pais, filhos moradores das calçadas sob marquises. As manhãs, gastava-as em orações, em leituras, em pensamentos de cores iguais.
Irmã Hortência também sorria, durante o dia todo, ao ver nos pobres Aquele que a convidara a voltar-se para seu interior, conhecer-se, descobrir a escolha, entre tantas, de um caminho tortuoso delas, existente em cada cabeça humana.
As pessoas olhavam seus cabelos curtos, sua veste comprida, marrom e continuavam a andar. Irmã Hortência também olhava para elas. Será que via Jesus?
Certa manhã de chuva forte saía ao centro da capital, onde certamente numerosos excluídos estariam sentindo frio, solidão e talvez sede e fome. Ela aproximou-se de duas figuras sentadas ao portão da área externa de uma igreja. Um, muito embreagado, o outro, não. Seus cabelos embaraçados, suas unhas pretas, as feridas recentes pelo corpo, pés doentes, bigodes já sem a noção de que parte cobrir ou proteger, tudo era o próprio Senhor. Irmã Dália não conseguiu vê-Lo. O fedor dos dois homens a enojava, suas escleras em brasa a assustavam, toda a sujeira, doença e perdição a repugnavam. Correu apavorada para dentro da igreja, bebeu água e fé. Procurou se juntar aos demais religiosos que cozinhavam sopa em uma enorme panela de ferro. A visão do caldo de cascas de legumes borbulhando e entornando pelas paredes externas do recipiente a fez voltar ao banco em que se ajoelhara antes.
Foi ali que apertou os olhos, as mãos entrelaçadas, os dedos dos pés e os músculos da coxa, pedindo forças e perdão para que pudesse começar mais um dia como São Francisco de Assis.
Saiu por uma das portas laterais com um pensamento e um guarda-chuva abertos.


Postado por Juliana. Foto: Thiago Kunz.

2 comentários:

Gabriela Galvão disse...

Nossa, publica aquela do padre d nome sugestivo e engraçado e q esqueci agora...

Mt boa esta tb. Ñ escreveu mais, escreveu?


A foto da outra postagem eh triste e calma... Eh boa, bem boa.

Anônimo disse...

A postagem "Destroços" foi feita pela Pat. É dela o poema. Legal, né? Ela disse que queria uma foto de paz.
Um beijo.